Com a devida vénia à página do Facebook da Associação Agostinho da Silva, não resistimos a (re)partilhar aqui um belo texto do padre católico e grande poeta José Tolentino Mendonça:
A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos pecados é a distração».
Vivemos num mundo que nos atropela continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram, entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos, vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade.
O verbo mais importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira presença.
Escreve o místico Silesius: «a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’, propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro.
Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira dominámos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que partilhámos, todo o amor com que amámos, preparam-nos para o ato simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas.
Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?
José Tolentino de Mendonça
A escuta, a vigilância, a atenção são ferramentas para uma viagem humana fecunda. Os Padres do deserto diziam: «O maior dos pecados é a distração».
Vivemos num mundo que nos atropela continuamente, pela quantidade e velocidade da informação. As imagens que vemos também nos obsidiam, aprisionam e devoram. Na sobreposição de discursos e factos, nem sempre somos capazes de contrariar a alienação. E depois: quantos dos nossos gestos não se tornaram, entretanto, meros automatismos! Quantas das nossas escolhas não se esvaziaram de conteúdo, cabendo-nos administrar apenas a forma! É assim que acontece que numa cultura marcada por um excesso de signos, vivamos mergulhados numa inesperada e dramática pobreza simbólica. De certa maneira, enfraqueceu-se a nossa capacidade de ver, e com isso perdemos o acesso a dimensões necessárias de profundidade.
O verbo mais importante é o ver, diziam os gregos. E para ver não basta olhar, não basta deslocar a visão para o outro lado da janela. É preciso, como avisa Fernando Pessoa, «não ter filosofia nenhuma». Só uma atitude de desprendimento nos permite aceder à vigilância autêntica. E não esqueçamos: só um coração pobre vigia. Só um peregrino descobre. Só o olhar do que não tem defesas consegue colher, no instante, a verdadeira presença.
Escreve o místico Silesius: «a rosa é sem porquê, floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos». Quando se diz ‘a rosa é sem porquê’, ou ‘a rosa é de ninguém’, propomo-nos investir num modo de construir o real que já não passa por sermos predadores e o real ser uma presa que vamos dominar ou domesticar. Entramos num espaço não já de predadores e presas, mas de vigilantes, de contemplativos, de operadores do assombro.
Vigiar é colocar-se na disponibilidade para a surpresa, para aquilo que vem, tendo consciência que o fundamental da vida não é o que adquirimos, o que fizemos, o que de alguma maneira dominámos, mas sim a incessante prática da hospitalidade. Toda a música que ouvimos, nos preparou, no fundo, para o ato da escuta. Todos os textos que estudamos, toda a poesia que lemos nos prepararam melhor para o ato da leitura. Toda a relação em que investimos, todo o afeto que partilhámos, todo o amor com que amámos, preparam-nos para o ato simples de amar. A vigilância é isso. Não está no apego ao mapa, mas no amor pela viagem. Temos mesmo de deixar a zona de conforto dos mapas para nos tornarmos viajantes, enamorados, vigilantes, sentinelas.
Dir-se-ia que a vida nos pede uma escuta que atravesse o tempo, que perfure os séculos, que transcenda a paisagem, sintonizando com aquilo que verdadeiramente temos diante de nós. E, por isso, temo-nos de perguntar muitas vezes, pela vida fora: Qual é a nossa fronteira? O que é que nos olha de frente? O que trazemos diante de nós?
José Tolentino de Mendonça
Comentários